domingo, 3 de março de 2013

texto novo s\ O país dos tenentes

O País dos Tenentes (João Batista de Andrade, 1987)

André Rocha Rodrigues*
Projetos ambiciosos e ousados costumam caminhar sobre a tênue linha que limita o genial e o ridículo, o sucesso e o fracasso. João Batista de Andrade foi ambicioso e ousado por caminhar sobre essa linha, mas obteve sucesso ao nos presentear com o seu genial “O País dos Tenentes”. Obra importante, entretanto, pouco mencionada do cinema brasileiro.
O filme é primoroso, cada detalhe é pensado, não possui cortes, cenas ou seqüências gratuitas. Com direção, argumento e roteiro de João Batista de Andrade, fotografia de Adrian Cooper, música, tanto bonita quanto bem utilizada, de Almeida Prado e direção de arte de Marcos Weinstock, o filme nos traz Paulo Autran (magnífico) no papel de um velho general da Reserva (General Gui), ex-revolucionário de juventude e, agora, relações públicas de uma multinacional em uma profunda crise de consciência e atormentado pelos fantasmas do passado e do presente.
O filme foi lançado em 1987 e ambientado no mesmo período, de transição política para democracia após anos de ditadura militar, por isso chamei a atenção para a ousadia do diretor. Em 1982 iniciou-se o movimento de diretas já no Brasil, o qual reivindicava o direito de eleições diretas para presidente, entretanto em 1985 o povo foi logrado por um colégio eleitoral e as eleições continuaram indiretas. Contudo, isso não arrefeceu a luta e as manifestações populares.
É em meio a manifestações populares que o filme se inicia. General Gui e seu bisneto André estão dentro de um Ford Galaxie que avança pelas ruas de São Paulo. O motorista dirige devagar. Atravessa o escuro de um túnel, entra numa rua coberta pela luz do sol, passa numa esquina onde um grupo de pessoas distribui panfletos e gritam palavras de ordem a favor de eleições diretas já. Dobra à direita, continua o seu caminho até a empresa Multinacional que lhe fará uma homenagem. Logo após, ao descer do carro, uma jornalista tenta (em vão) uma entrevista com o General, relembrando-o que ele fez parte de alguns dos principais movimentos políticos no Brasil e lhe pergunta se ele se lembra da história e se isso ainda é importante.
Por si, esse plano seqüência já nos diz muito sobre o filme. Além da beleza estética da seqüência, mostra-se o General nacionalista e patriota de outrora dentro de um dos símbolos do capitalismo estadunidense. Ele segue indiferente a população, receber uma homenagem de um alemão e prefere se calar. Aqui é mostrado o cerne do filme, a intenção de João Batista: em um momento de transição para democracia colocar os militares em crise de consciência, fazer com que eles revejam e repensem o que fizeram com o país. O diretor mostra um velho general em crise, impossibilitado de juntar as duas pontas de sua formação, os ideais da juventude e a degradação da velhice. Uma crise deflagrada a partir da homenagem que lhe é feita pela multinacional justamente no momento de abertura política, quando a população começa a ganhar as ruas exigindo democracia. A homenagem, que na verdade evidencia sua degradação, conflita com os anseios populares. Esse é o conflito exato entre o velho e o jovem Gui.
Paulo Autran como general Gui contempla sua imagem como revolucionário
A partir daí João Batista rememora brilhantemente e de forma não linear, através dos delírios e sonhos de Gui, um pouco da história do Brasil, com enfoque no movimento tenentista, o qual o general participou. O primeiro acontecimento evidenciado no filme foi a revolta dos 18 do Forte, revolta esta que e eclodiu no Forte de Copacabana em 1922. A crítica primordial dos tenentes era a oposição aos governantes atuais, liderados pelas poderosas oligarquias regionais que liderava a política republicana, e também as más condições do exercito bem como o rumo educacional que estava sendo imputado aos alunos militares. Um ensino basicamente militar, descontextualizado da diversidade da escola positivista que, segundo eles, afastava os militares das questões sociais e políticas, tratando apenas de formar militares profissionais. Fica evidente que o movimento teve um caráter elitista, pela ausência do povo, e foi justamente isto que frustrou alguns dirigentes do movimento, pois a revolta não conseguiu tirar de circulação da política dominante os velhos elementos da velha oligarquia. A frustração do General Gui é pelo fato dele ter participado do movimento e de ter tomado a decisão que o afastava da ideologia que deu origem à revolta. Pois não quis lutar ao lado dos que foram com Prestes, mas aderiu ao vitorioso Getúlio Vargas, incorporando-se ao Estado.
Gui não concorda com os prestistas e talvez julgue que aquele discurso fosse um discurso revolucionário importado – o da revolução pelo proletariado, uma vez que esse era uma minoria pouco significativa, e a transposição para os camponeses soava como uma importação política, sem qualquer fundamento nacional, qualquer embasamento real.
Em meio a sua crise Gui, rabugento, nega atender telefonemas e diz a empregada quando esta lhe há um telefonema para ele: “Diga que eu não estou. Não estou nunca. Não estou pra ninguém. E se insistirem diga que estou velho e egoísta e que agora eu só penso em mim. Se insistirem mais diga que eu morri.” (grifo meu) Ou seja, não quero mais me envolver com nada, porque quando me envolvi resultou em coisas catastróficas, agora só penso em mim.
A crise do militar adaptado pelo sistema em um periodo de transição
O filme nos mostra que em um movimento político (de massa ou não) as coisas fogem do controle ou do previsto pelo sujeito. Em uma cena magistral Gui vê seu muro desabar e a movimentação tomar conta da cena. As decisões tomadas podem desdobrar em realizações impensadas e demasiadamente equivocadas. General Gui ainda vivo, sente-se apodrecido, corrompido, muitas vezes com o corpo coberto de insetos. Ele se vê à beira da morte e se deixa envolver por sua memória, repassando o longo processo de apodrecimento, de corrupção, que consumiu sua própria história. João Batista não tem a intenção de vangloriar as lutas do passado, nem de cantar a vitória contra os militares. Está interessado na crise, na falta de perspectiva, no apodrecimento, justamente no momento da transição política.
Imagem do Filme "O país dos tenentes"
Ainda assim, deixa escapar um fio de esperança, se é que podemos pontuar assim. O menino André, bisneto de Gui que aparece desde a 1ª cena. Podemos ver nele a figura do futuro, da esperança. O menino no início observa curioso toda à estrutura da grande empresa multinacional, mas na casa do bisavô tem aulas de música e gosta de brincar com as crianças pobres que vão até ali, ou seja, o povo. Em um determinado momento o menino desaparece misteriosamente, a família se preocupa e se mobiliza para encontrá-lo, mas é nítida a preocupação (talvez maior) com os negócios.
Quando procuram Gui para falar sobre o bisneto ele diz: “Ele vai voltar. Eu sei que ele vai voltar”. Aqui podemos pensar que a esperança no futuro ficou um pouco anuviada durante o período militar e esses se preocupavam mais com outros negócios do que com o futuro do povo. Mas João Batista alimenta a esperança quando Gui diz que André vai voltar. E ainda mais, quando André reaparece (sem explicação) junto com o povo, pulando, correndo, brincando e pegando as coisas da mesa dos poderosos.
O filme opta pela reflexão e ao fazer isso evita as tentações e facilidades do rancor pessoal, ainda que arriscando sua própria sobrevivência como produto de indústria cultural.
Por isso, em O País dos Tenentes não há heróis nem vilões, para fruição de qualquer êxtase catártico. A figura dos militares é humanizada, mas não romanceada.
João Batista pergunta: Que país é este? Que general é este? O País dos Tenentes formula as perguntas e estimula – como poucos filmes têm feito – uma reflexão em torno delas. Quanto às respostas, elas são deixadas ao espectador. Esta é sua grandeza, que não passaria de respeitável abstração caso não estivesse ancorada sobre sólida qualidade cinematográfica.

*André Rocha Rodrigues é graduando em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – UNESP Campus Araraquara. Tem experiência na área de Sociologia. Com ênfase em Sociologia da cultura. Pesquisa Indústria Cultural e Indústria fonográfica. Colabora esporadicamente com o site Pipoca e Nanquim (http://pipocaenanquim.com.br/) e escreve no blog http://rochaandre.wordpress.com/

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